Em uma paisagem na Mata Atlântica do Rio Grande do Sul, junto a habitantes que compartilham vínculos com fundos de vales, atentamos para as experiências mobilizadas na relação pessoa-mato partindo de uma questão central: considerando as relações sociais nas suas dimensões humanas e não humanas, como o mato é constitutivo desta socialidade? A localidade, denominada Confim das Águas, situa-se em contexto estratégico para as políticas preservacionistas globais, incidindo sobre ela uma série de regulamentações quanto ao manejo dos recursos biológicos. No entanto, transitando por uma série de caminhos habitados na paisagem, orientando-se pelas pessoas em suas múltiplas experiências, reconhecemos um mato que desconstitui a lógica da purificação entre espaços naturais e culturais, onde sua aparente imperatividade e uniformidade comporta uma pluralidade de vivências, criações e invenções. A trajetória empírica revelou variadas perspectivas etnoecológicas de pensar e viver o mato em sua indissociabilidade da dinâmica das atividades produtivas. O tema mato distendeu-se em narrativas[1] e agenciamentos que explicitaram suas diferentes relações e significados, pretéritos e presentes, mas fundamentalmente integrado à dinâmica da paisagem, das experiências, dos aprendizados e dos ritmos cotidianos da vida das pessoas. As experiências registradas imageticamente revelaram um conjunto de interações sociais imanentes à relação pessoa-mato, implicando em um entrelaçamento tático de ciclos humanos e não humanos. Evocaram, também, um conhecimento tácito e experimental inscrito no corpo pelo processo de engajamento direto com experiências e tarefas habituais - habilidades corporais não acessíveis discursivamente. Mobilizou-se um mato pensado e vivido a partir de uma perspectiva que problematiza os limites disciplinares entre a antropologia e a ecologia[2], visando um enfoque interdisciplinar das relações entre humanos e seus ambientes, o que incorre também na construção de uma narrativa visual[3] sensível a esta perspectiva. Tirando brejo nos mato: a samambaia-preta Acompanhar Bento na coleta da samambaia-preta, planta que emerge nas capoeiras, faz aguçar a percepção de que, através das experiências de uma trajetória de vida, se participa ativamente da produção de uma paisagem em conexão com outras pessoas, plantas, bichos e meio. Com um passo característico de quem observa e reconhece rapidamente os caminhos já trilhados, o movimento de Bento acompanha as curvas dos morros. Na perspectiva do antropólogo Tim Ingold[4], o contorno da paisagem não é tão medido quanto sentido; ele é diretamente incorporado à experiência do corpo. A agilidade e destreza de Bento em tirar, ajeitar, apertar, amarrar, levantar e, por fim, carregar quase cinquenta quilos de samambaia nas costas expressa uma experiência incorporada em seus 30 anos de convívio com a planta, a partir de habilidades constituídas neste processo de engajamento na atividade extrativista: É jeito, e não força – diz ele. Tem que ser na lua certa: manejando madeiras, balaios e fibras O manejo das madeiras, da corda da embireira, taquaras e cipós segue impreterivelmente a lua: É que antigamente tudo se trabalhava com a lua [...] – esclarece dona Margarida, após revelar que a época ideal para o corte da madeira de lei é no inverno, na minguante de junho ou julho. Sugerindo tratar-se de um conhecimento que aprendeu por conta, Bento diz reconhecer as madeiras pelo tronco, pelas folhas e pelo cheiro, o que revela no processo de ensinar-me, tirando pedaços da casca com seu facão para realçar sua cor e textura e chamando atenção para os aromas e formas das folhas. A feitura do balaio pelo Seu João demanda uma habilidade de todo o corpo: os pés firmam as primeiras urdiduras, compondo seu fundo a partir de um fio mestre, guia para os demais. Com ele vai se trançando todo o balaio, até chegar em sua boca, envolvendo um acabamento minucioso a fim de garantir que o emaranhado não se abra. [1] Remetendo a figura do narrador em BENJAMIN, W. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. [2] A perspectiva em foco é a etnoecologia, remetendo à COELHO-DE-SOUZA, G.; BASSI, Joana Braun; KUBO, Rumi. ETNOECOLOGIA: DIMENSÕES TEÓRICA E APLICADA. Transformações no espaço rural. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 25-48, 2011. [3] ROCHA, A. L. C. Tecnologias Audiovisuais na Construção de Narrativas Etnográficas, um percurso de investigação. Campos, v. 4, p. 113-134, 2003. [4] INGOLD, T. Perception of the Environment: Essays on Livelihood, Dwelling and Skill. London: Routledge, 2000.