Descrevemos e analisamos novas culturas epistêmicas (KNORR-CETINA, 1999) que estão sendo engendradas por dois modos de ciência emergentes – a Ciência Aberta e a Ciência Comum – e que, apesar de inúmeras diferenças, convergem na crítica à noção de fato científico e na estratégia de transformar o caderno de laboratório em sua principal tecnologia literária. Adotamos a noção de cultura epistêmica para operacionalizar nossa análise sobre estratégias para configuração de objetos, tecnologias e sujeitos epistêmicos por sistemas de produção de conhecimento que, por sua vez, criam efeitos de verdade. Para tal, nos inspiramos nas etnografias de laboratório e na abordagem das “três tecnologias” de Shapin e Shaffer (1985) para explicar como os filósofos naturais do século XVII construíram a noção de fato científico (matter of fact) como uma “variedade de conhecimento” tão sólida que se tornou sinônimo de ciência. De modo análogo, procuramos compreender como os modos de ciência emergentes pretendem legitimar novas maneiras de produzir conhecimento e disputar a própria noção de ciência. No movimento contemporâneo da Ciência Aberta, abordamos o open notebook science, tal como proposto em 2006 pelo professor e pesquisador em Química Jean-Claude Bradley como “uma maneira de fazer ciência na qual – da melhor maneira possível – você torna toda a sua pesquisa livre e acessível ao público em tempo real” (BRADLEY, set 2010). Adentramos seu “laboratório aberto” através de uma pesquisa documental que identificou o caderno aberto como principal elemento de um complexo ecossistema de colaboração aberta. Articulada com tecnologias sociais e materiais, esta tecnologia literária pretende substituir uma ciência baseada na confiança por outra fundamentada na transparência e na proveniência dos dados. Sua cultura epistêmica não impõe a obtenção de um fato científico como condição sine qua non para a comunicação de conhecimento novo, mas valoriza, sobretudo, o registro adequado da prática experimental seja qual for seu resultado – o que chamamos de matter of proof pela ênfase na documentação. Já na Ciência Comum (LAFUENTE, ESTALELLA, 2015),abordamos o caderno aberto de laboratório cidadão (CALC) prototipado por Antonio Lafuente e práticas de documentação de pesquisadoras-mediadoras do Medialab Prado, instituição pública madrilenha se autodenomina “laboratório cidadão”. Aqui, a crítica à noção de fato científico dialoga com o composicionismo latouriano ao compreendê-lo como um (importante) subconjunto da realidade que, no entanto, não deve se sobrepor aos debates políticos, mas conectar-se às “questões de interesse” (matter of concern). Nesta perspectiva, a modernização epistêmica fomentaria um “terceiro setor do conhecimento” que disputaria a governança antecipatória de assuntos tecnocientíficos (LAFUENTE, 2007). Nossa observação participante identificou que as práticas atuais de documentação tendem a reproduzir a lógica do campo da produção cultural que fomenta novos imaginários políticos, mas não inicia o ciclo de acumulação de conhecimento que o transformaria os laboratórios cidadãos em centros de cálculo (LATOUR, 2000). Os promotores de atividades tendem a reduzir a comunicação à divulgação de atividades para atrair participantes em potencial ou a prestação de contas, comprovando a realização de atividades.