Era da saturação, da hipertrofia do olhar, da interface da tela, da visualidade. Decorrente de um processo civilizatório que elegeu a visão como o sentido mais adequado e confiável para o conhecimento, para a sociabilidade e, portanto, para as trocas comunicativas, debruçar-se sobre a materialidade de um meio essencialmente sonoro como o rádio, pode ser reconhecido como um desafio. Na década de 1990, quando iniciei minha pesquisa de mestrado sobre a estética radiofônica, o levantamento bibliográfico sobre o meio resultava principalmente em obras que abordavam o aspecto histórico, a importância social do primeiro meio de comunicação eletrônico de massa em um país de dimensões e desigualdades sociais continentais e os usos políticomercadológico. Havia também os conhecidos manuais que apresentavam orientações e ‘dicas’ de como apurar e produzir notícias, realizar coberturas para um veículo que se destacava pela agilidade, credibilidade, abrangência social e versatilidade de consumo, afinal com o ‘radinho’ de pilha era possível acompanhar a programação em qualquer espaço da casa, da rua, do trabalho e até nos estádios de futebol, como imortalizado pelo “Zé do Rádio’, Ivanildo Firmino dos Santos, torcedor do Sport Recife, famoso por carregar junto ao ouvido um radinho durante as partidas do time do coração, realizadas na Ilha do Retiro, o Estádio Adelmar da Costa Carvalho. A necessidade e intenção de identificar, compreender e analisar o potencial da linguagem essencialmente sonora da radiofonia brasileira para construir sentido, relatar fatos e narrativas sem desprezar os elementos descritivos e expressivos dos acontecimentos e seus personagens – especialistas, anônimos -, me conduziram a um diálogo com diversas áreas do conhecimento e suas subáreas tais como a antropologia, etologia, a biologia, história, comunicação, psicologia e artes. O contato com a perspectiva do medievalista Paul Zumthor e da pesquisadora Jerusa Pires Ferreira me ajudaram a compreender como a permanência da oralidade na miscigenada cultura brasileira contribuíam para a configuração de um jeito único, singular e brasileiro de fazer rádio. A inventividade de John Cage e a pesquisa de Rudolf Arnheim publicada em Estética Radiófonica, aliadas à compreensão de como nosso corpo é afetado e percebe os estímulos sonoros me cedeu régua e compasso (como diz o poeta) para escutar a potencialidade da sintaxe da estética sonora e, portanto, da radiofonia brasileira. A cada transformação do meio rádio e das plataformas digitais de áudio, motivada pela incorporação de novas tecnologias, essa escuta ressoa e me coloca em sintonia com a importância e pertinência de se aprofundar sobre a potencialidade de construir sentido e vínculos por meio de conteúdos sonoros. Uma jornada que encontra parceria com diversos pesquisadores brasileiros, sobretudo, os integrantes do Grupo de Pesquisa Rádio e Mídia Sonora da Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação e mais recentemente, Guilherme Udo. O livro Expressividade da Linguagem Radiofônica e Sonora: Reflexões para um Uso Criativo de Guilherme Udo traz uma relevante contribuição para pesquisadores e comunicadores que apostam no potencial expressivo da linguagem radiofônica para a produção de conteúdo, sobretudo os informativos, com potencial de acionamento da imaginação do ouvinteinternauta entendido como coautor. No contexto de múltiplas ressignificações dos processos comunicativos mediados por dispositivos móveis com conexão extensiva, o texto do Prof. Ms Guilherme William Udo Santos acrescenta ao universo de pesquisas e reflexões sobre a midiamorfose da radiofonia um enfoque a partir da dramaturgia, área de interesse e pesquisa do autor alimentada desde a graduação. Expandindo do dispositivo eletrônico-rádio para toda e qualquer plataforma digital de distribuição de conteúdo sonoros, como os agregadores de podcast e streaming, a retomada da discussão sobre os elementos constituintes da linguagem sonora é uma oportunidade de trazer à tona questões como a tridimensionalidade do corpo subtraída pelos processos de abstração inerentes às trocas comunicativas mediadas por aparelhos tecnológicos eletrônicos e digitais. É Villem Flusser no livro Elogio da superficialidade: o universo das imagens técnicas, que nos chama a atenção para o processo de abstração no qual o homem, de sua dimensão tridimensional, ou seja, de corpo que ocupa um espaço concreto, segue rumo à nulodimensionalidade ocupando um espaço virtual, um corpo convertido em dígitos. Ao pensar sobre a palavra vocalizada, música, trilha, o efeito sonoro, silêncio e o ruído Udo coloca em pauta a importância do corpo no processo de comunicação. Pois ao abordar a presença do som nos processos comunicativos contemporâneos marcados pela interface da tela, abre espaço para uma escuta ativa sobre o espaço que conteúdos sonoros têm reconquistado no cotidiano do internauta-ouvinte pautado pela instantaneidade e profusão infinita de informações. A eleição do radioteatro brasileiro e a hörspiel alemã como fios condutores da obra, encontra ressonância com a prática que nos constitui enquanto seres que aprenderam que narrar uma história embala outras histórias. É possível deduzir que por meio da discussão sobre as estruturas da narrativa na radiofonia, o autor estabeleça um diálogo com o cenário contemporâneo marcado pelo aumento do consumo de conteúdos sonoros digitais mapeado por institutos de pesquisa de mídia e empresas de plataformas de streaming, assim como pelo surgimento e pela adesão de usuários ao Clubhouse, uma rede social digital exclusivamente sonora. O livro Expressividade da Linguagem Radiofônica e Sonora: Reflexões para um Uso Criativo resultado da pesquisa de mestrado de Guilherme Udo traz para o primeiro plano o questionamento enfrentado por pesquisadores e produtores brasileiros, sobre como qualificar os conteúdos compartilhados na rede por emissoras de rádio, empresas de comunicação de diversos setores como audiovisual, mídias impressas e pelo ouvinte prosumer, àquele que produz e distribui conteúdo? Udo aposta no caminho que inclui a reflexão e discussão sobre a ontogênese da audição, a potencialidade expressiva de cada elemento sonoro da estética radiofônica, a complexidade da experiência individual de ouvir rádio e os recursos de técnicas dramáticas. Uma trajetória que acrescenta recursos para potencializar a criação e compartilhamento de conteúdos inventivos e provocantes, inclusive os voltados para a informação.