A palavra anatomia, que trago para o título desta tese, deriva etimologicamente da junção de origem grega ana (acima) e tomáo (cortar), e significa cortar em partes. A Base Nacional Comum Curricular, objeto central dessa tese, só poderá ser entendida neste e nos tempos futuros se olharmos para sua espinha dorsal e compreendermos suas partes ausentes. Isso implica olhar para as mutilações decorrentes de uma política de memória que insiste em apagar, silenciar, interditar sujeitos, narrativas e saberes. Este foi o cenário vivido pela área de História no processo de construção de uma proposta curricular para a educação brasileira no século XXI, um tempo marcado por muitos desafios para a ciência e para pesquisadores e professores. Como resultado das discussões do Plano Nacional de Educação (PNE/2014), que estabeleceu diversas metas a serem cumpridas até 2020, a Base Nacional Comum Curricular deveria conter direitos e objetivos de aprendizagem capazes de unificar 60% dos conteúdos escolares a nível nacional, enquanto os 40% restantes respeitariam a autonomia e diversidade local. A primeira proposta pensada para a base, entre os anos de 2013 e 2014, apostava nessa construção capaz de garantir a autoria das escolas e dos professores, mas não chegou a ganhar o debate público e foi sumariamente interditada pelo Ministério da Educação. Em 2015, uma nova versão foi publicada e mobilizou um enorme debate público em torno da BNCC. Dentro desse debate, a área de História reuniu a maior parte dos holofotes projetados nessa querela pública, sofrendo fortes ataques à sua produção e desqualificação da sua equipe elaboradora, que propunha a superação de uma narrativa histórica quadripartite – tradicionalmente organizada em história antiga, medieval, moderna e contemporânea – e trazia para o centro do debate questões socialmente vivas, como aquelas atinentes à lei 11.645/2008, que introduz a obrigatoriedade da história Afro-brasileira e indígenas nos currículos escolares. Diante de um cenário de rejeição mobilizado por setores conservadores do meio acadêmico e da sociedade civil, bem como capitaneado por interesses privados na educação e, por fim, pelo próprio Ministério da Educação, aquela versão considerada incômoda será interditada em nome de uma outra versão realizada por sujeitos externo ao campo do Ensino de História. Eles foram capazes de trazer de volta um código disciplinar canônico, desconsiderando nesse sentido os investimentos em pesquisa realizados nas últimas três décadas pela comunidade disciplinar do Ensino de História. Narrar essa história torna-se assim um dever de memória. Partindo desse princípio, busquei nessa tese entender como se deram os processos de construção das primeiras versões da BNCC, propostas por sujeitos atuantes no campo do Ensino de História? E a partir deste ponto, buscar compreender quais as razões que levaram à interdição de ambas as versões? Entre os referenciais teóricos que me ajudaram a ler esse cenário, destaco especialmente Ivor Goodson e seu entendimento de currículo como “tradições inventadas”, construídas socialmente e por uma comunidade disciplinar. Para a definição de currículo como política de memória, ancoro esta pesquisa nas discussões desenvolvidas por Paul Ricoeur e Michael Pollak. Por fim, para compreender o que significa discutir currículo em tempos de barbárie, busquei inspiração em Walter Benjamin e sua clareza sobre os efeitos nefastos do progresso sobre a História e sobre os sujeitos históricos. Contrariando a tentativa de apagamento gerado no processo de construção da BNCC, minha opção metodológica foi ouvir aqueles e aquelas que tiveram suas propostas interditadas. Nesse sentido, as narrativas de alguns dos autores e autoras das primeiras versões de História assumiram protagonismo e apontaram a complexidade que envolveu a construção curricular de História na base, marcada por defesas de territórios, potentes invenções, disputadas de fronteiras, batalhas enfrentadas e silêncios que atravessaram as decisões políticas impostas à educação brasileira.